segunda-feira, 9 de junho de 2008

Fragmentos de um velho vaso novo

“Como o barro nas mãos do oleiro, assim são vocês em minhas mãos”. (Jr 18:6b)


Ser um vaso novo, e tudo que isso significa, é o clamor de nossas línguas, é o desejo ardente dos corações que, quando contritos, estão no Senhor. Eu, consciente ou inconscientemente, pulo esse clamor e nego esse ardente desejo, quando me defronto com a dor que isso pode me acarretar. Porque, sei que, humanamente falando, quero mesmo é reconstruir um velho vaso. Aquele que eu mesmo despedacei! Sinto-me, às vezes, como uma obra de arte inacabada, que por ser criação das mais perfeitas mãos, é linda. Sinto-me, noutros momentos, como um vaso feito com formas deslumbrantes e exclusivas, cujas pinturas, em si impressas, narram a mais linda história de amor. Mas, em um pequeno hiato da minha soberba, os lampejos de uma consciência santa me fazem relembrar que sou uma obra decaída, um vaso estilhaçado por pedras que saíram do meu próprio interior. Pedras que atirei contra tudo que eu realmente gostaria e deveria ser. Pedras que fizeram em pedaços a linda obra do cuidadoso Artesão. Pedras que feriram a edificação e o Construtor.
Busco, então, quase que desesperadamente, remontar os cacos de barro daquela obra outrora perfeita. Cacos que representam pedaços de mim mesmo! E em lugares lúgubres, encontro estes pequenos fragmentos de minha vida, que, algumas vezes, nem me lembro onde estavam na cronologia do meu ser. Alguns cacos que encontro, esquecidos pelos recantos da minha velha morada, me fazem lembrar de doces momentos que não mais posso viver. Lembram-me os amores perdidos e, também, os conquistados; lembram-me os sonhos juvenis e os projetos mais serenos; lembram-me momentos em que parei quando deveria andar e momentos em que andei quando deveria parar.
Outros pequenos estilhaços de barro, que em épocas remotas compuseram a minha vida, me fazem chorar as dores da saudade ou do terrível arrependimento. Há, ainda, os cacos que simplesmente me envergonham. E, outros tantos, que me fazem sorrir de mim mesmo, sem orgulho, sem remorso, sem dor, apenas recordações. Aqui, agora, exposto na estante da vida, como um simples ornamento de uma obra maior, finalmente, descobri que sou esse vaso quebrado, e percebi que existem pedaços de mim espalhados num vasto lugar chamado tempo. Descobri que o Oleiro me fez segundo a sua imagem e que as muitas pedras, que eu mesmo atirei, me desfiguraram.
Quero juntar esses fragmentos de um velho vaso, deixando, obviamente, alguns definitivamente para trás. Quero montar-me de novo, e voltar a ser aquele vaso à imagem do meu Criador. Porém, o Oleiro me ensina, todos os dias, que não é colando velhos pedaços que se faz um vaso novo, e que é impossível remendar um vaso sem juntar todas as partes. Portanto, é necessário que os velhos pedaços sejam desmanchados por inteiro, perdendo suas cores, seu formato, mas não a sua essência. É preciso que cada um dos pequenos cacos volte a me compor, mas não na mesma forma, nem ocupando o mesmo lugar. O Oleiro também me ensinou que um novo vaso só pode ser feito com barro macio e maleável que seja moldável pelas suas mãos. Não quero ser novamente quebrado, pois descobri que os vasos só se quebram quando estão fora dos cuidados de quem os criou, nem quero ser simplesmente um vaso novo, dispensando a matéria prima da minha essência. Quero ser apenas como o barro, informe nas mãos do meu Senhor, como alguém que se desmancha e se refaz pelas mãos de um Oleiro que cria a beleza, espalha o amor e dá o sopro da vida.
É assim que quero ser: um nada e um tudo nas mãos do meu Deus, que tudo fez a partir do nada.

Descobrindo o outro!

Em minha opinião, descobrir o outro como pessoa, e entendê-lo como alguém plenamente humano, é um acontecimento fascinante e, ao mesmo tempo, um fantástico exercício de autocompreensão. Digo isso, por que creio que só é possível enxergar a humanidade do outro quando o percebo como ser semelhante a tudo aquilo que eu também sou. Não estou falando sobre encontrar semelhanças na identidade, como uma cara-metade, ou coisas do gênero, mas em reconhecer a essência de alguém que, como eu, é privado de perfeição. Assim, a humanidade do outro só se torna perceptível, ou reconhecível, pela minha consciência altamente treinada para ser individualista, em dois casos: primeiro, quando consigo deslocar-me do eu e entendê-lo, de fato, como outra pessoa, sem querer fazer dele uma mera extensão do meu pensar; segundo, quando me disponho a lançar sobre ele um olhar próprio e independente dos julgamentos que me foram transferidos por outras pessoas.
Nos dois casos acima, o outro aparece como uma mera representação imaginativa daquilo que eu decidi através das minhas expectativas ou das determinações feitas pelas imagens que me trouxeram. No primeiro caso, faço do outro uma espécie de ser idealizado que não tem uma identidade própria, mas é apenas aquilo que eu desejo que ele seja. Nego-me a compreendê-lo e a entendê-lo como um ser autônomo que tem sua própria formação, sua própria relação com o mundo e fundamentalmente as suas capacidades de decisão, reflexão e alteração. Dessa forma, crio as “princesas ou os príncipes encantados” que existem apenas, no meu próprio mundo, com a finalidade única de me possibilitar uma alucinada fuga das dificuldades reais de um relacionamento com o outro. Seria, realmente, muito fácil se cada pessoa com quem me relaciono fosse essa simples representação dos meus ideais, ou seja, se ela fosse esse boneco, ou essa boneca, que tento forjar segundo a minha própria imagem e semelhança. No segundo caso, o problema gira em torno das reflexões feitas sobre as concepções estabelecidas por terceiros. Isto é, o outro aparece como um reflexo de suas relações anteriores, se positivas a imagem é ótima, se negativas a imagem é terrível. Ele é agora um conto, uma imagem fundada em fragmentos do seu passado, descontextualizado e sem direito ao aprendizado e à mudança interior. Como se ele fosse um sujeito imutável, invariável. Um ser que circula dentro de uma esfera de atitudes que o impede de modificar-se em função das suas próprias experiências ou das novas articulações relacionais. A história, nesse caso, faz-se argumento suficiente para medir qualitativamente alguém, desconsiderando as marcas impressas pelos sucessos e insucessos no decorrer do tempo e dos relacionamentos como elementos fundamentais para a construção ou re-construção do ser em questão.
Posso dizer-lhes hoje, caros amigos e amigas, baseado em minhas próprias experiências, que o ser humano pode até ser condicionado pela sua história, mas não é determinado por ela. O ser humano tem a capacidade incrível de desenvolver, de ser novo, de ser diferente a cada dia. Portanto, o ser do passado, que viveu relações certas ou erradas, torna-se um novo ser a cada nova etapa de sua existência, pois ser humano é ser inacabado. Então, sinto-me capaz de continuar essa pequena reflexão afirmando que descobrir o outro não é uma atitude sua, nem minha, pois só se descobre àquilo que já tem plena existência, aquilo que já está pronto. Descobrir o outro é fundamentalmente deixá-lo mostrar-se, é permitir-lhe a expressão prática daquilo que ele percebe a seu próprio respeito e, também, daquilo que ele ainda não percebe. É, acima de tudo, dar-lhe o direito de mudar, de reconstruir-se, de adaptar-se. Deve-se entender que o ser humano não é um objeto vago de significados, ou cheio de características imutáveis como os seres inanimados, mas que é, sobretudo, alguém volátil que se transforma em cada nova relação, em cada nova reflexão. Nós, os inacabados seres humanos, não somos as imagens, nem as projeções, que os outros fazem de nós, somos aquilo que construímos até o presente, mas seremos mais, pois agora também estamos nos reconstruindo.