sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A poderosa lição de Shrek

Qual é a cara do bem? Essa foi a minha primeira pergunta quando assisti Shrek há alguns anos. O fato é que nós fomos ensinados, desde o início da nossa infância, a relacionar as ideias de bom e belo, como se uma coisa dependesse da outra. As boas pessoas dos filmes e dos desenhos animados, dos livros e das obras de arte, são sempre pessoas bonitas. Pessoas consideradas feias, do ponto de vista da estética comum, dificilmente aparecem na televisão e quando aparecem jamais ocupam papeis principais em filmes ou novelas, nem são convidadas para fazer comerciais de produtos famosos. Para mim, Shrek subverte, de maneira magnífica, essa ditadura da beleza.
Antes que alguém faça juízos precipitados acerca das minhas primeiras palavras, quero dizer que não sou contra a beleza, nem contra a contemplação de coisas e pessoas bonitas, apenas quero chamar a atenção para a necessidade de garantir um equilíbrio que nos afaste dos preconceitos que, muitas vezes, impingem às pessoas feias os lugares inferiores na nossa sociedade. A lógica tradicional expressa em A Bela e a Fera, no Patinho Feio e na maioria dos clássicos da literatura infantil é que o bem se consolida quando o feio se torna belo. Isto é, quando o sapo vira príncipe é por que o bem prevaleceu. O problema desse raciocínio é que se trata de um belo meramente estético, do qual o bem em nada depende.
Em A Bela e a Fera, para citar um exemplo, a Fera já era boa no seu interior, o bem já se apresentava naquilo que de mais profundo havia em seu ser. Pense comigo: alguém que abre o seu castelo para um desconhecido, que cultiva com docilidade um belo jardim, que se apaixona e age com as mais belas demonstrações de amor por uma moça, apesar de cometer alguns erros, humanos erros, não deveria ser chamado de fera, nem precisar se transformar fisicamente para ser aceito como bom. Mas, o fato é que o desenho mostra, com muita aprovação por sinal, que se a Fera não se transformasse em um belo príncipe, ela estaria condenada a ser eternamente execrada pela sociedade.
Essa lógica da associação entre beleza física e bondade ganha corpo no imaginário popular, alicerçada na própria cultura religiosa e nas artes sacras. Veja-se o Cristo de olhos azuis, longos cabelos louros e barba bem feita que é apresentado nas artes sacras, veja-se a beleza tipicamente europeia da Santa Ceia de Da Vinci, homens brancos e louros que dificilmente corresponderiam ao fenótipo dos habitantes da palestina, veja-se, também, a beleza dos corpos de Jesus e Maria, beirando a sensualidade na Pietá de Michelangelo. Nas imagens dos santos e santas medievais, os corpos perfeitos, as curvas sublimes aproximavam, ou aproximam o santo do belo.
Esse tipo de associação é catastrófico, é base mundana para a formação dos preconceitos, é base para a desvalorização humana por razões meramente acidentais. Ao longo da história, inclusive na história de Israel, a beleza tem sido utilizada para justificar posições sociais. O caso de Saul o rei israelita escolhido por que era belo, o caso de Davi o jovem pequeno e sardento que foi desprezado pela própria família. Tudo isso revela como a beleza vem produzindo injustiças nas mais diversas camadas das estruturas sociais.
O pior de tudo é que essa associação nefasta entre beleza e bondade e entre feiura e maldade foi largamente desenvolvida pelo cristianismo medieval. Embora os pré-socráticos (filósofos gregos do período entre 700 e 450 a.C) já fizessem as primeiras reflexões sobre ordem, harmonia e beleza como definidoras do andamento perfeito do cosmos, a sua mitologia ainda não personalizava a beleza e a feiura, transformando pessoas feias em representações do mal. A deusa grega Pênia representa a pobreza e a penúria, mas, não era uma deusa feia no imaginário grego, pelo contrário, ela era belíssima, os romanos medievais a transformaram em um monstro. Eles criaram a ideia de que o Diabo é feio e Deus é bonito, de que os negros não tinham alma, e as suas artes fizeram todos os “santos” ficarem fisicamente bonitos. Essa tendência filosófica, cultural e religiosa atravessou toda a modernidade e chegou forte ao nosso tempo.
Por essa razão, gosto da inversão feita por Shrek. A beleza de Fiona não representa sua bondade, pelo contrário, representa a arrogância típica de quem se considera inserido nos padrões aceitos. O amor e o bem se manifestam em uma transformação inversa à lógica comum, Shrek não se transforma em um belo príncipe – como era de se esperar – Fiona, a bela princesa, se transforma em uma ogro, nesse momento o amor e o bem se revelam. Ao assistir o desenho pela primeira vez, espera-se justamente o contrário. Por que será? Que surpresa, quando tudo aponta para mais uma transformação do feio no belo... a bela se torna feia e afirma: "é isso que sou".
No segundo filme, o rei, pai de Fiona, extremamente preconceituoso, revela-se um feio e enrugado sapo, mostrando o que a beleza convencional escondia. Nesse ponto do filme, compreendo que não dá para fazer como Nietzsche, não dá apenas para dizer que a beleza é relativa. Isso pode ser verdade em uma perspectiva meramente individual, mas existe um padrão social de beleza, uma beleza aceita, aquela beleza que o Rei tinha e Shrek não. Esse padrão é determinado pelo que os filmes, novelas, artes plásticas e literatura, juntos, tentam impor. É justamente esse tipo de beleza que Shrek critica.
Agora volto à Nietzsche, sem contradições, sem relativismos, apenas em sua observação moral, a feiura, assim como a beleza, não existe. Elas duas são concepções particulares, embrulhos do sentimento humano. Mas, o problema, agora me distanciando do alemão, é que a sociedade sofre influências que formam os padrões dos quais falei e esses padrões geram preconceitos abomináveis. Em Shrek a feiura é bela, é humana, é individual e independente. Gosto dessa ideia, gosto da ideia de que pessoas feias e bonitas podem ocupar o mesmo espaço social, que seus fenótipos não estão ligados à sua interioridade, à sua capacidade de fazer o bem e o mal. Mas, quando a lição de Shrek será aprendida? Quando deixarão de escolher os seus relacionamentos apenas por causa da beleza estética? Quando as pessoas deixarão de imaginar que alguém é ladrão apenas por que está mal vestido? Quando as pessoas deixarão de se iludir com o belo e com o feio?