Qual
é a cara do bem? Essa foi a minha primeira pergunta quando assisti Shrek há
alguns anos. O fato é que nós fomos ensinados, desde o início da nossa
infância, a relacionar as ideias de bom e belo, como se uma coisa dependesse da
outra. As boas pessoas dos filmes e dos desenhos animados, dos livros e das
obras de arte, são sempre pessoas bonitas. Pessoas consideradas feias, do ponto
de vista da estética comum, dificilmente aparecem na televisão e quando
aparecem jamais ocupam papeis principais em filmes ou novelas, nem são convidadas
para fazer comerciais de produtos famosos. Para mim, Shrek subverte, de maneira
magnífica, essa ditadura da beleza.
Antes
que alguém faça juízos precipitados acerca das minhas primeiras palavras, quero
dizer que não sou contra a beleza, nem contra a contemplação de coisas e
pessoas bonitas, apenas quero chamar a atenção para a necessidade de garantir
um equilíbrio que nos afaste dos preconceitos que, muitas vezes, impingem às
pessoas feias os lugares inferiores na nossa sociedade. A lógica tradicional
expressa em A Bela e a Fera, no Patinho Feio e na maioria dos clássicos da
literatura infantil é que o bem se consolida quando o feio se torna belo. Isto
é, quando o sapo vira príncipe é por que o bem prevaleceu. O problema desse
raciocínio é que se trata de um belo meramente estético, do qual o bem em nada
depende.
Em
A Bela e a Fera, para citar um exemplo, a Fera já era boa no seu interior, o
bem já se apresentava naquilo que de mais profundo havia em seu ser. Pense
comigo: alguém que abre o seu castelo para um desconhecido, que cultiva com
docilidade um belo jardim, que se apaixona e age com as mais belas
demonstrações de amor por uma moça, apesar de cometer alguns erros, humanos
erros, não deveria ser chamado de fera, nem precisar se transformar fisicamente
para ser aceito como bom. Mas, o fato é que o desenho mostra, com muita
aprovação por sinal, que se a Fera não se transformasse em um belo príncipe,
ela estaria condenada a ser eternamente execrada pela sociedade.
Essa
lógica da associação entre beleza física e bondade ganha corpo no imaginário
popular, alicerçada na própria cultura religiosa e nas artes sacras. Veja-se o
Cristo de olhos azuis, longos cabelos louros e barba bem feita que é
apresentado nas artes sacras, veja-se a beleza tipicamente europeia da Santa
Ceia de Da Vinci, homens brancos e louros que dificilmente corresponderiam ao
fenótipo dos habitantes da palestina, veja-se, também, a beleza dos corpos de
Jesus e Maria, beirando a sensualidade na Pietá de Michelangelo. Nas imagens
dos santos e santas medievais, os corpos perfeitos, as curvas sublimes aproximavam,
ou aproximam o santo do belo.
Esse
tipo de associação é catastrófico, é base mundana para a formação dos
preconceitos, é base para a desvalorização humana por razões meramente
acidentais. Ao longo da história, inclusive na história de Israel, a beleza tem
sido utilizada para justificar posições sociais. O caso de Saul o rei israelita
escolhido por que era belo, o caso de Davi o jovem pequeno e sardento que foi
desprezado pela própria família. Tudo isso revela como a beleza vem produzindo
injustiças nas mais diversas camadas das estruturas sociais.
O
pior de tudo é que essa associação nefasta entre beleza e bondade e entre
feiura e maldade foi largamente desenvolvida pelo cristianismo medieval. Embora
os pré-socráticos (filósofos gregos do período entre 700 e 450 a.C) já fizessem
as primeiras reflexões sobre ordem, harmonia e beleza como definidoras do
andamento perfeito do cosmos, a sua mitologia ainda não personalizava a beleza
e a feiura, transformando pessoas feias em representações do mal. A deusa grega
Pênia representa a pobreza e a penúria, mas, não era uma deusa feia no
imaginário grego, pelo contrário, ela era belíssima, os romanos medievais a
transformaram em um monstro. Eles criaram a ideia de que o Diabo é feio e Deus
é bonito, de que os negros não tinham alma, e as suas artes fizeram todos os
“santos” ficarem fisicamente bonitos. Essa tendência filosófica, cultural e
religiosa atravessou toda a modernidade e chegou forte ao nosso tempo.
Por
essa razão, gosto da inversão feita por Shrek. A beleza de Fiona não representa
sua bondade, pelo contrário, representa a arrogância típica de quem se
considera inserido nos padrões aceitos. O amor e o bem se manifestam em uma
transformação inversa à lógica comum, Shrek não se transforma em um belo
príncipe – como era de se esperar – Fiona, a bela princesa, se transforma em
uma ogro, nesse momento o amor e o bem se revelam. Ao assistir o desenho pela
primeira vez, espera-se justamente o contrário. Por que será? Que surpresa,
quando tudo aponta para mais uma transformação do feio no belo... a bela se
torna feia e afirma: "é isso que sou".
No
segundo filme, o rei, pai de Fiona, extremamente preconceituoso, revela-se um
feio e enrugado sapo, mostrando o que a beleza convencional escondia. Nesse
ponto do filme, compreendo que não dá para fazer como Nietzsche, não dá apenas
para dizer que a beleza é relativa. Isso pode ser verdade em uma perspectiva
meramente individual, mas existe um padrão social de beleza, uma beleza aceita,
aquela beleza que o Rei tinha e Shrek não. Esse padrão é determinado pelo que
os filmes, novelas, artes plásticas e literatura, juntos, tentam impor. É
justamente esse tipo de beleza que Shrek critica.
Agora
volto à Nietzsche, sem contradições, sem relativismos, apenas em sua observação
moral, a feiura, assim como a beleza, não existe. Elas duas são concepções
particulares, embrulhos do sentimento humano. Mas, o problema, agora me
distanciando do alemão, é que a sociedade sofre influências que formam os
padrões dos quais falei e esses padrões geram preconceitos abomináveis. Em
Shrek a feiura é bela, é humana, é individual e independente. Gosto dessa
ideia, gosto da ideia de que pessoas feias e bonitas podem ocupar o mesmo
espaço social, que seus fenótipos não estão ligados à sua interioridade, à sua
capacidade de fazer o bem e o mal. Mas, quando a lição de Shrek será aprendida?
Quando deixarão de escolher os seus relacionamentos apenas por causa da beleza
estética? Quando as pessoas deixarão de imaginar que alguém é ladrão apenas por
que está mal vestido? Quando as pessoas deixarão de se iludir com o belo e com
o feio?