domingo, 6 de setembro de 2015

Migração: problema econômico, moral ou de compaixão?

Uma parcela significativa da população mundial enfrenta, nos dias atuais, terríveis problemas com guerras, perseguições políticas, escassez de alimentos e falta de condições mínimas de bem-estar social, dentre outros. Esses problemas têm gerado o maior fluxo migratório entre nações de todo o mundo desde a II Guerra Mundial. A Europa, por exemplo, tem recebido migrantes da África, da Ásia e de países europeus que estão fora da Zona do Euro. Aqui, nas Américas, o problema, também, tem se agigantado. Todos os anos, um número incalculável de pessoas tenta migrar, legal ou ilegalmente, para países com imagem mais positiva no que diz respeito à qualidade de vida.
Essa situação, que carece de solução urgente, é motivo de discussões amplas, abrangendo temas como relações internacionais, economia regional, religião, justiça, solidariedade, hospitalidade entre os povos, bem-estar social e muito mais. No meio de toda essa discussão, a grande novidade é a recente abertura das fronteiras alemãs para o acolhimento dos migrantes, principalmente os oriundos da Síria. Os germânicos, desde o III Reich, realmente, modificaram os seus conceitos sobre hospitalidade e tolerância entre os povos. Isso pode ser percebido na prática, pois a população daquele país saiu às ruas com donativos e cartazes de boas vindas para acolher os recém-chegados.
A grande questão é: se a atitude dos alemães no que diz respeito à solidariedade, cosmopolitismo e hospitalidade universal são dignas de imitação, será que as questões econômicas e sociais que emergem dessa mesma atitude são suportáveis pelos países que abrem suas fronteiras para a imigração nessas condições? Simplificando, trata-se de uma redução do problema ao fator econômico. De um ponto de vista moral, essa redução é abominável, não se pode deixar pessoas privadas de direitos e condições fundamentais para a vida só por causa do argumento de redução da riqueza daqueles que normalmente têm mais do que precisam ter. Mas, infelizmente, não temos como negar que o fator econômico é preponderante, pois as implicações vão desde sacrifícios individuais para a população recebedora até a possibilidade da emergência de grandes problemas sociais como bolsões de pobreza, aumento da violência, redução da renda média, etc.
Como, então, conciliar interesses tão radicalmente diferentes? Bem, essa é uma questão da física, todo fluxo tem um sentido de corrente, ou seja, tem origem e destino. Assim, a questão da migração precisa ser pensada nesses dois pontos: 1) na origem, criando condições de bem-estar social suficientes para a satisfação das pessoas com a sua terra natal. Isso implica em promover as condições básicas de desenvolvimento socioeconômico, referidas, por exemplo, no trabalho de Amarty Sen, que atendem em especial as necessidades individuais; e, 2) na acolhida, os países que acolhem os migrantes de regiões menos privilegiadas devem inserir esses novos moradores no processo de produção de riquezas da nação, evitando assim os problemas que costumam emergir do aumento drástico do tamanho da população sem o devido acompanhamento do crescimento econômico.
Claro, olhando assim, parece simplismo. Mas, longe de imaginar que resolvi o problema da terra em uma página, chamo a atenção para o fato de que essa é uma discussão que data de Platão e Aristóteles e vem se arrastando por milênios. Produzindo, portanto, em termos teóricos e pragmáticos, soluções aplicáveis, muitas delas já testadas para se resolver esse problema. Veja-se que quando esse mesmo problema ocorreu durante e após a II Guerra Mundial, a Europa não apenas resolveu o problema como cresceu em qualidade de vida. Nesse texto, a primeira parte da proposição que eu apresentei está centrada na origem, isto é, na reorganização política dos países onde o fluxo se origina. Essa teoria é oriunda do pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant, precisamente do seu texto intitulado A Paz Perpétua. Já a segunda parte está alinhada com o pensamento de John Rawls, contida em sua obra Uma Teoria de Justiça, principalmente no Princípio da Diferença proposto no Capítulo II da obra e a reflexão sobre as Parcelas Distributivas (Capítulo IV).
Bem caro amigo, o que quero dizer nesse texto é que não podemos imaginar um mundo com fronteiras fechadas para a solidariedade, para a hospitalidade e, principalmente, para o cosmopolitismo. É inimaginável, do ponto de vista ético, cristão, ou de qualquer religião, que pessoas estejam sobrevivendo sem as condições mínimas em regiões com pouco, ou nenhum, desenvolvimento econômico, enquanto, em outro lugares, pessoas vivem de maneira opulenta, negando ajuda aos primeiros. Com certeza, a solução não está nesse texto. Aqui, eu quero apenas levantar uma esperançosa discussão sobre a necessidade de um projeto político mais humano para o problema dos povos excluídos.  

sexta-feira, 3 de julho de 2015

A corrupção no Brasil é um problema cultural?

O problema político brasileiro, a meu ver, está situado sobre duas bases: a primeira diz respeito à propensão do povo brasileiro para manter no poder aquelas pessoas que estiveram envolvidos em corrupção – mesmo em casos comprovados a população costuma reeleger; a segunda base trata da falta de uma gestão pública que imponha dificuldades reais para realização da corrupção. Considero, no entanto, a segunda base bem mais importante do que a primeira.
Apesar de haver uma grande crise moral instaurada no país e de defender com unhas e dentes que uma verdadeira democracia só se faz com alternância do poder, temos que entender que essa crise não é apenas moral, ela é, sobretudo, gerencial. Seria improvável que encontrássemos pessoas moralmente melhores do que aquelas que hoje estão no poder e mesmo que encontrássemos essas pessoas tão ajustadas moralmente, elas teriam que, uma vez no poder, enfrentar um sistema que por si mesmo é predisposto à corrupção.
O meu pai já ensinava: “a ocasião faz o ladrão”. Essa é a realidade da administração pública brasileira, uma máquina de fazer ladrões. Veja-se com que facilidade bilhões de reais desapareceram dos cofres da Petrobrás; ou com que facilidade os bancos estatais (nomeadamente Banco do Brasil e Caixa)foram utilizados de maneira ilegal para atender demandas meramente políticas de um projeto de poder; ou ainda o uso do BNDES para distribuir dinheiro indevidamente para pessoas interessadas em resgatar os “investimentos” feitos nas campanhas políticas. Será que esses desvios financeiros aconteceriam, por exemplo, em empresas privadas? Será que R$ 6 bilhões desapareceriam dos cofres de instituições como Votorantim, Bradesco, Unilever, sem nada ser notado? A resposta evidente é não. Mas, por quê?
Será que as pessoas que trabalham no setor privado têm um caráter mais elevado do que as pessoas que trabalham no setor público, especialmente, em cargos eletivos? Não creio que seja possível fazer esse tipo de julgamento! O que está óbvio nessa comparação entre a gestão pública e a gestão no setor privado é a diferença gigante entre as formas de controle de cada sistema. O sistema privado é ajustado com mecanismos que dificultam desvios de dinheiro, mas ao mesmo tempo, são altamente eficazes nas suas finalidades; enquanto que o sistema público funciona exatamente ao contrário, sendo simultaneamente fraco no controle interno e ineficaz no cumprimento de suas funções básicas.
Voltando, por um instante ao problema do caráter, defendo que a alternância de poder em um estado democrático de direito é fundamental. Mesmo que um gestor público esteja fazendo um excelente trabalho, ele deve ser periodicamente substituído. Mas, isso não é tudo, a administração pública carece de sustentabilidade, ou seja, precisa de uma sistematização dos seus processos que impeça a ocorrência de disfunções financeiras ou de finalidade, independentemente de quem a esteja gerindo. Isto é, o Estado precisa de gestão pública eficaz. Mas, o que isso significa na prática?
Significa que o Estado Brasileiro precisa se reorganizar gerencialmente, precisa desenvolver métodos que dificultem a corrupção e, ao mesmo tempo, ajudem a focalizar naquilo que é sua atividade fim, a saber – o bem estar social. Normalmente as pessoas generalizam sua visão política, afirmando que “todo político é corrupto”. Na realidade, elas estão olhando na direção errada, elas estão olhando para pessoas que se corrompem, mas não estão vendo a realidade de um estado desorganizado propício à atividade criminosa do desvio de verbas, da venda de influência e do descompromisso com o cidadão.
Poderíamos, então, falar que o problema da corrupção no Brasil é cultural? Acho complicado, pois isso nos afastaria do caminho de uma solução real para o problema. Estaríamos assumindo que a corrupção é parte da identidade de todo um povo ou, no mínimo, que é um valor positivo presente no imaginário coletivo da população. Creio que isso seria bastante criticável. Mas, o grande problema é que a admissão da corrupção como um problema cultural seria, também, a transferência do problema da incompetência da gestão do erário público para a identidade cultural de um povo inteiro.
Alguém pode, agora, estar pensando que ignoro o problema da pequena corrupção, aquela em que o indivíduo sonega tributos, ou faz um “gato” para roubar energia, ou engana na entrega de serviços e produtos, etc. Esse nível de corrupção não pode ser considerado parte da cultura brasileira pelo simples fato de que ele é considerado desprezível pela maciça maioria da população, inclusive pelos seus praticantes. A pequena corrupção é fruto do caos jurídico e disciplinar no Brasil, no final das contas da gestão pública que é, em larga medida, responsável pelo bem-estar social e de cada cidadão (Bent Greve - Felicidade).
A má distribuição dos bens públicos (saúde, educação, renda, meios de produção, etc.) coloca os participantes de uma sociedade em níveis desiguais de concorrência pelo bem estar (Amartya Sem – A Ideia de Justiça e Desenvolvimento como Liberdade). Fato que, em certa medida, explica, embora não justifique, os pequenos delitos que chamamos de pequena corrupção. A famosa lei de Gerson, que resume a ideia de “levar vantagem em tudo”, não é própria da cultura brasileira, mas do estado de materialismo e de individualismo de toda uma época. Portanto, vale para brasileiros, alemães, americanos, dinamarqueses e todo o mundo. O que varia é a forma como cada um desses povos presta conta de suas ações no interior de sua sociedade.
Enfim, se admitirmos que o problema da corrupção no Brasil seja cultural, caminharemos para a mais ferrenha e triste acomodação política de um povo. Mais do que isso, caminharemos para uma inversão completa dos juízos morais, atribuindo à cultura de uma nação um problema que é claramente gerencial. Em resumo: onde há boa gestão, não há corrupção. A diferença entre o Brasil e as noções mais e menos corruptas está justamente na qualidade da gestão pública e NÃO no caráter, ou na cultura, dos seus povos.



quarta-feira, 15 de maio de 2013

Há um sentido para a vida?

Há algum tempo escrevi um texto sobre a precariedade humana para apresentar em um simpósio de ciências sociais; trata-se de uma reflexão sobre a fragilidade da vida e a incapacidade do homem de se compreender no contexto de um mundo (aqui no sentido cosmológico, ou seja, de universo) que ainda nos é quase que inteiramente desconhecido. A reflexão, fundamentada nas obras de dois grandes filósofos, Santo Agostinho e Martin Heidegger, foi considerada pessimista por um colega professor e filósofo. Faço questão de dizer que discordo plenamente do colega, mas reconheço que o problema talvez esteja na introdução do texto e na forte evidenciação do quanto somos pequenos diante do cosmos.
Hoje, ao receber a notícia da morte súbita de uma pessoa por quem nutri grande admiração, aquele texto veio inteiramente à minha mente – agora, evidenciando o sentido da filosofia prática, aquela que se ocupa dos fatos e atos da vida comum. Perguntei-me, depois de uma jornada considerada excepcional, aquele homem tão admirado se foi, deixando o quê? Mas, essa pergunta não está relacionada diretamente ao finado amigo, muito longe disso, não quero que o texto ofereça qualquer aparência de desmerecimento da vida, da carreira e da produção dele. A pergunta está relacionada àquilo que nos tem motivado a fazer o que fazemos e a desejar o que desejamos.
Quando voltei a refletir sobre tudo isso, caí na inevitável questão, qual é o sentido da vida? Sim, pois diante da morte de alguém que se admira é impossível não se perguntar sobre esse assunto. Tentei obter uma resposta racional, aliás tenho tentado isso há muito tempo, procurando esclarecer, principalmente aos meus amigos pensadores, que razões temos para continua vivendo. E do ponto de vista puramente racional, vi-me obrigado a concordar com Friedrich Nietzsche. Aliás, vi-me obrigado a me tornar ainda mais cético do que ele. Olhando para o mundo de um ponto de vista materialista, não podemos encontrar sentido na vida, não há como. Nietzsche sugere que a vida humana não tem finalidade nenhuma a não ser a reprodução e perpetuação da espécie. Eu, porém, acredito que, do ponto de vista materialista, isso não é sentido suficiente para a vida.
Sou mais cético que Nietzsche quando afirmo, usando como base o mesmo materialismo racional que ele e seus seguidores utilizam, que nenhum legado que possamos deixar para as gerações futuras poderá escapar do cansaço que consome as nossas vidas. As heranças que deixamos para os nossos filhos colocam-nos na mesma posição que nós, oferecendo-lhes as mesmas preocupações e trazendo-lhes as mesmas dores. Uma repetição da vida, um ciclo que se reinicia continuamente, um “eterno retorno” da mesmice da falta de sentido. Lembra-me a lenda de Sísifo, personagem da mitologia grega, condenado por Zeus a mover uma pedra para o cume de uma montanha, mas, todos os dias, no final da tarde, com a tarefa quase concluída, a pedra rola montanha abaixo e Sísifo é obrigado a reiniciar a sua tarefa. Eternamente, Sísifo empurra uma pedra para um alvo que jamais será atingido. Assim, parece-me a vida quando eu a limito às fronteiras da racionalidade.
Mas, pera lá, eu disse que o texto não era pessimista. Então, tenho que provar isso. Acontece que a precariedade da vida, ou seja, essa nossa incapacidade de explicar racionalmente as nossas origens e destinos – pela falta de conhecimento do mundo no qual fomos lançados – abre os caminhos para algo muito mais forte do que a simples racionalidade, o sentimento de eternidade. Sim, o sentimento de eternidade, aquele sentimento que nos faz ter uma convicção interior de que não encontraremos um fim, mas que nossas vidas de alguma maneira se prologarão. A racionalidade nos afasta desse sentimento, mas, a não ser que estejamos inseridos na mais profunda angústia, esse sentimento está lá no nosso interior, ainda que racionalmente negado.
Esse sentimento não pode ser tratado apenas como um mecanismo de defesa da psicanálise freudiana, ele precisa ser aceito como uma alternativa a tudo aquilo que precisamos e desejamos conhecer. Não quero retornar ao período mítico, destruído brilhantemente pela filosofia pré-socrática, longe disso, quero apenas que se veja que a racionalidade materialista deixa um vazio muito grande na sua explicação. Bram Stoker, em seu mais famoso livro - Drácula -, colocou na boca de um dos seus personagens, Van Helsing, que fé é acreditar em tudo aquilo que temos certeza que não existe.
É essa lacuna entre o que sabemos e o que desconhecemos que me anima a encontrar um sentido para a vida. Esse sentido não está no que deixamos como herança, não está no que possuímos, não está no que encontramos, mas sim naquilo que procuramos. O sentido da vida é essa busca implacável pelo preenchimento interno, pela elucidação de algo superior à razão e todas as suas mirabolantes explicações, é a busca por Deus. A lacuna do saber é o espaço correto para se colocar Deus, não como esperança vã, no sentido que lhe é dado por Comte-Sponville, mas, como realidade plausível e possível, como posto pelo rei Salomão.
“Não posso ver anjos no espaço”, diz o astronauta, “por isso sei que eles não existem”. “Eu também não posso ver pensamentos”, diz o neurocirurgião, “mas, sei que eles estão no interior de cada cabeça que opero”. Não precisamos de limites para conhecer o mundo, precisamos de humildade, pois a fé é “a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11:1). 

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A poderosa lição de Shrek

Qual é a cara do bem? Essa foi a minha primeira pergunta quando assisti Shrek há alguns anos. O fato é que nós fomos ensinados, desde o início da nossa infância, a relacionar as ideias de bom e belo, como se uma coisa dependesse da outra. As boas pessoas dos filmes e dos desenhos animados, dos livros e das obras de arte, são sempre pessoas bonitas. Pessoas consideradas feias, do ponto de vista da estética comum, dificilmente aparecem na televisão e quando aparecem jamais ocupam papeis principais em filmes ou novelas, nem são convidadas para fazer comerciais de produtos famosos. Para mim, Shrek subverte, de maneira magnífica, essa ditadura da beleza.
Antes que alguém faça juízos precipitados acerca das minhas primeiras palavras, quero dizer que não sou contra a beleza, nem contra a contemplação de coisas e pessoas bonitas, apenas quero chamar a atenção para a necessidade de garantir um equilíbrio que nos afaste dos preconceitos que, muitas vezes, impingem às pessoas feias os lugares inferiores na nossa sociedade. A lógica tradicional expressa em A Bela e a Fera, no Patinho Feio e na maioria dos clássicos da literatura infantil é que o bem se consolida quando o feio se torna belo. Isto é, quando o sapo vira príncipe é por que o bem prevaleceu. O problema desse raciocínio é que se trata de um belo meramente estético, do qual o bem em nada depende.
Em A Bela e a Fera, para citar um exemplo, a Fera já era boa no seu interior, o bem já se apresentava naquilo que de mais profundo havia em seu ser. Pense comigo: alguém que abre o seu castelo para um desconhecido, que cultiva com docilidade um belo jardim, que se apaixona e age com as mais belas demonstrações de amor por uma moça, apesar de cometer alguns erros, humanos erros, não deveria ser chamado de fera, nem precisar se transformar fisicamente para ser aceito como bom. Mas, o fato é que o desenho mostra, com muita aprovação por sinal, que se a Fera não se transformasse em um belo príncipe, ela estaria condenada a ser eternamente execrada pela sociedade.
Essa lógica da associação entre beleza física e bondade ganha corpo no imaginário popular, alicerçada na própria cultura religiosa e nas artes sacras. Veja-se o Cristo de olhos azuis, longos cabelos louros e barba bem feita que é apresentado nas artes sacras, veja-se a beleza tipicamente europeia da Santa Ceia de Da Vinci, homens brancos e louros que dificilmente corresponderiam ao fenótipo dos habitantes da palestina, veja-se, também, a beleza dos corpos de Jesus e Maria, beirando a sensualidade na Pietá de Michelangelo. Nas imagens dos santos e santas medievais, os corpos perfeitos, as curvas sublimes aproximavam, ou aproximam o santo do belo.
Esse tipo de associação é catastrófico, é base mundana para a formação dos preconceitos, é base para a desvalorização humana por razões meramente acidentais. Ao longo da história, inclusive na história de Israel, a beleza tem sido utilizada para justificar posições sociais. O caso de Saul o rei israelita escolhido por que era belo, o caso de Davi o jovem pequeno e sardento que foi desprezado pela própria família. Tudo isso revela como a beleza vem produzindo injustiças nas mais diversas camadas das estruturas sociais.
O pior de tudo é que essa associação nefasta entre beleza e bondade e entre feiura e maldade foi largamente desenvolvida pelo cristianismo medieval. Embora os pré-socráticos (filósofos gregos do período entre 700 e 450 a.C) já fizessem as primeiras reflexões sobre ordem, harmonia e beleza como definidoras do andamento perfeito do cosmos, a sua mitologia ainda não personalizava a beleza e a feiura, transformando pessoas feias em representações do mal. A deusa grega Pênia representa a pobreza e a penúria, mas, não era uma deusa feia no imaginário grego, pelo contrário, ela era belíssima, os romanos medievais a transformaram em um monstro. Eles criaram a ideia de que o Diabo é feio e Deus é bonito, de que os negros não tinham alma, e as suas artes fizeram todos os “santos” ficarem fisicamente bonitos. Essa tendência filosófica, cultural e religiosa atravessou toda a modernidade e chegou forte ao nosso tempo.
Por essa razão, gosto da inversão feita por Shrek. A beleza de Fiona não representa sua bondade, pelo contrário, representa a arrogância típica de quem se considera inserido nos padrões aceitos. O amor e o bem se manifestam em uma transformação inversa à lógica comum, Shrek não se transforma em um belo príncipe – como era de se esperar – Fiona, a bela princesa, se transforma em uma ogro, nesse momento o amor e o bem se revelam. Ao assistir o desenho pela primeira vez, espera-se justamente o contrário. Por que será? Que surpresa, quando tudo aponta para mais uma transformação do feio no belo... a bela se torna feia e afirma: "é isso que sou".
No segundo filme, o rei, pai de Fiona, extremamente preconceituoso, revela-se um feio e enrugado sapo, mostrando o que a beleza convencional escondia. Nesse ponto do filme, compreendo que não dá para fazer como Nietzsche, não dá apenas para dizer que a beleza é relativa. Isso pode ser verdade em uma perspectiva meramente individual, mas existe um padrão social de beleza, uma beleza aceita, aquela beleza que o Rei tinha e Shrek não. Esse padrão é determinado pelo que os filmes, novelas, artes plásticas e literatura, juntos, tentam impor. É justamente esse tipo de beleza que Shrek critica.
Agora volto à Nietzsche, sem contradições, sem relativismos, apenas em sua observação moral, a feiura, assim como a beleza, não existe. Elas duas são concepções particulares, embrulhos do sentimento humano. Mas, o problema, agora me distanciando do alemão, é que a sociedade sofre influências que formam os padrões dos quais falei e esses padrões geram preconceitos abomináveis. Em Shrek a feiura é bela, é humana, é individual e independente. Gosto dessa ideia, gosto da ideia de que pessoas feias e bonitas podem ocupar o mesmo espaço social, que seus fenótipos não estão ligados à sua interioridade, à sua capacidade de fazer o bem e o mal. Mas, quando a lição de Shrek será aprendida? Quando deixarão de escolher os seus relacionamentos apenas por causa da beleza estética? Quando as pessoas deixarão de imaginar que alguém é ladrão apenas por que está mal vestido? Quando as pessoas deixarão de se iludir com o belo e com o feio?

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Imediatismo Crônico

O brasileiro se alimenta do imediatismo! Faço essa afirmação com o desejo de denunciar a forma passiva e irrefletida que modela as interpretações que o nosso povo faz acerca de sua própria condição social. Na semana passada, para citar um exemplo prático, foi divulgada mais uma pesquisa sobre a popularidade da presidente Dilma Rousseff, uma aprovação altíssima do seu governo foi apontada pelos brasileiros. Até aí tudo bem, o que acho estranho nessa pesquisa é que as pessoas que deram quase 90% de aprovação a esse governo classificaram, na mesma consulta, a educação e a saúde brasileiras como péssimas. Como isso é possível? Como é ótimo um governo em que a educação e a saúde são péssimas?
A resposta não é simples, tem muitas variáveis, mas, no meu ponto de vista, a passividade imediatista do brasileiro, isto é, esse contentamento com migalhas, é fator crucial para essa apatia política que observamos. Os pobres estão contentes com as bolsas, não se preocupam com o seu desenvolvimento, não olham para o futuro, querem apenas um pouco de dinheiro agora, não exigem nada que mude suas perspectivas. A classe média está imensamente feliz com o crédito fácil, comprando e comprando. Sem perceber o achatamento do seu poder aquisitivo, antecipa os seus desejos e se envolve em dívidas cada vez maiores (a classe média tem o maior endividamento da história, em média 41% dos rendimentos mensais comprometidos com dívidas acima de 12 meses, a maior inadimplência de todos os tempos, 25% das pessoas que possuem cartões de crédito estão com atrasos superiores a três meses – dados do IPEA e IBGE, divulgados em 10/07/12 pela Globo News). Os ricos, por sua vez, são constantemente favorecidos por programas de incentivo ao consumo que reduzem temporariamente os impactos da crise financeira internacional e alimentam os bolsos dos mais abastados. Além disso, o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que não apresenta nenhuma proposta de longo prazo, nem nenhum favorecimento real à indústria nacional, abre caminho para a corrupção em todo o país. Ou seja, todos estão, de alguma maneira, contentes, estupidamente felizes. Por isso, ninguém reclama de nada.
Acontece que o crescimento de médio e longo prazo do Brasil está seriamente comprometido pela falta daqueles dois pontos que os brasileiros negligenciaram ao dar sua opinião sobre o atual governo, educação e saúde. Basta refletir sobre outra questão prática, como é que em um país que possui 16 milhões de desempregados pode sobrar 100 mil vagas apenas no setor de tecnologia da informação e comunicação e outras cinquenta mil nas áreas de indústria e serviços? A resposta está na falta de educação e de condições sociais de trabalho. O capital disponível para investimento de longo prazo ao redor do mundo cresceu 5% em relação a 2011, alcançando a marca de 1,6 trilhões de dólares. No entanto, segundo o Banco Mundial, a intensão de aplicação no Brasil caiu 19%. A justificativa dos investidores internacionais está centrada na falta de: 1) ambiente institucional e regulatório adequado, ou seja, política econômica e poder judiciário confiáveis; 2) infraestrutura compatível com as projeções de crescimento econômico e, 3) educação em nível técnico e superior que possam prover o mercado de mão de obra suficientemente qualificada para o atendimento das demandas das empresas.
A cegueira em relação à educação é o que mais me impressiona, como se pode deixar de perceber que a sustentabilidade do progresso econômico que o Brasil está experimentando hoje depende essencialmente da qualificação profissional e das projeções analíticas das ciências sociais? É necessário que o Brasil invista em programa de educação de alto nível, que ofereça vagas suficientes para a população em todos os níveis educacionais, que desenvolva um tipo de assistencialismo que transforme os desvalidos em pessoas qualificadas para o trabalho e para a reflexão social. Sem isso, o país continuará amargando a desigualdade social e baixos índices de desenvolvimento por muito tempo. Veja que os programas de restauração da Alemanha e do Japão, dois países destruídos na Segunda Guerra Mundial, foram alicerçados no desenvolvimento massivo da educação. Quando falo de desenvolvimento massivo, falo que esses países desenvolveram instituições de ensino e valorizaram o seu corpo docente ao ponto de se tornarem referências mundiais. Aqui, dou uma alfinetada no programa Brasil sem Fronteiras, que é maravilhoso, mas precisa ser acompanhado de um desenvolvimento do sistema educacional no Brasil, não dá para ficar dependendo da formação no exterior.
Enfim, precisamos de certo pessimismo para poder desenvolver. Sim, precisamos de pessimismo para sair do canto, para nos mover, esse excesso de otimismo está matando o nosso país. Está na hora de desacreditar, está na hora de contestar o futuro da nossa nação e de oferecer às próximas gerações um futuro planejado. Isso só será possível se houver investimentos reais na educação brasileira. Para se ter uma ideia, o Brasil, por incrível que pareça, no início dos anos 1990, destinava 6,5% dos seu PIB para a educação, este percentual caiu para 4,1% no atual governo. Em 1994, o então presidente da república, FHC, um dos principais responsáveis pela desvalorização do profissional educador, vetou um projeto que colocaria 7% do PIB a disposição da educação no Brasil, esse projeto incluía aumentos progressivos do investimento até atingir 10%. Quando Lula assumiu o governo em 2002, infelizmente, manteve o veto e Dilma acompanhou. Lá se vão 18 anos de atraso nos investimentos para um desenvolvimento realmente sustentável do nosso Brasil.
Espero que com um pouco de pessimismo, ou seja, prestando mais atenção ao que realmente está acontecendo, o brasileiro consiga mudar esse quadro e se qualificar para participar efetivamente do seu futuro.


sábado, 30 de junho de 2012

O Retorno da AIDS

A AIDS está de volta! Mas, como assim de volta? É que no final da década de 1990 o governo federal realizou uma grande campanha de conscientização e prevenção contra essa terrível síndrome. Na ocasião, o número de casos em todo o Brasil baixou significativamente. Infelizmente esse número voltou a crescer de maneira preocupante, atingindo principalmente os jovens. Essa é uma notícia lastimável e que, evidentemente, eu não gostaria de dar. Mas, o Ministério da Saúde está seriamente preocupado, ao ponto de externar publicamente a situação.
Mas, afinal, o que está havendo? Por que a AIDS, antes controlada, volta ao cenário das preocupações nacionais? É muito simples, a AIDS voltou por causa da mentira! Pior ainda, da mentira construída publicamente. Quantas campanhas publicitárias foram divulgadas inventando que o “portador do HIV” tem uma vida normal como a de outra pessoa qualquer? Antes que você, leitor politicamente correto, apresente argumentos em favor desse tipo de comunicação pública, eu quero lhe dizer que sei que é uma tentativa de suprimir os preconceitos, mas é uma tentativa burra.
É necessário voltar a informar que AIDS é uma doença e que ela mata, alertando para o fato de que o doente de AIDS – que não é portador de nada, mas um doente – tem uma vida altamente regrada, depende de medicamentos que cumprem as funções que deveriam ser realizadas pelo seu organismo, que, embora possa passar tempos sem apresentar sintomas, a sua capacidade imunológica está comprometida para sempre, pois a AIDS não tem cura. A comunicação contra o preconceito é outra história.
Mas, por que um discurso tão duro? Em primeiro lugar, por que foi esse discurso que salvou milhares de vidas nos anos 90 e começo dos anos 2000. Em segundo lugar, por que a AIDS é uma doença que tem causas comportamentais. Para ter uma ideia, em 1994, o percentual de pessoas sexualmente ativas no Brasil que declararam ter mais de cinco parceiros sexuais por ano era 4%, em 2012 esse número subiu para 12%. Desse mesmo grupo – das pessoas sexualmente ativas do Brasil – 97% declararam ter conhecimento e acesso aos meios de prevenção da AIDS, porém a esmagadora maioria não faz uso dos recursos que conhece para se prevenir.
O problema, portanto, não é a falta de conhecimento sobre os meios de prevenção, o problema está em uma cultura de defesa equivocada da sexualidade inconsequente. Liberdade sem o seu contraponto, ou seja, sem responsabilidade. Antes a problemática era centrada no equívoco de que a AIDS não poderia acontecer comigo, agora a coisa é pior: ainda que a AIDS aconteça comigo, não tem problema, terei uma vida normal. Isso é consequência da alienação politicamente correta, da mentira suave, que se elabora em uma tentativa aleijada de resolver o problema do preconceito sem avaliar o infortúnio da doença e seus agraves sociais.
O filósofo Luís Felipe Pondé adverte, em seu livro O Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, que esse discurso esquerdista, amplamente divulgado nas universidades e em alguns ambientes de falsa intelectualidade, proclama-se correto, mas é, na realidade, tosco, inconsequente e, em grande parte das vezes, inútil. Eu concordo plenamente com ele. O problema do retorno da AIDS, que tomo como exemplo para essa reflexão, é uma evidência prática de que os discursos são expressões da consciência e das práticas de vida, com isso quero dizer que o discurso expressa a consciência de quem o proclama e interfere na vida prática de todos os que o assumem sem reflexão.
É necessário dar um grito contra essa ideia ditatorial. Contra esse discurso hipócrita e arrogante que se intitula “correto”, sem se abrir para a discussão contraditória. Discurso incompleto em sua concepção, pobre e vazio em sua conclusão. Além do problema do retorno da AIDS, o discurso politicamente correto tem trazido sérios transtornos à educação, à aplicação da justiça, às reflexões éticas e muitos outros temas que envolvem o nosso cotidiano. Quero pegar carona em Pondé e colaborar com as denúncias contra essa falsa democracia que se instala a partir de um discurso, realçando que democracia verdadeira se instala a partir de uma construção dialógica, em que opiniões contraditórias têm a mesma participação na reflexão.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Saudade

Dizem, não sei por que, que saudade é palavra sem tradução. Deve ser alguma definição linguística mais complexa, ou um desses mitos que são criados na sabedoria popular. Em alemão, por exemplo, [das] heimweh é o vocábulo utilizado para se referir à saudade. Em inglês, miss traduz, não sei com que grau de perfeição, se não a palavra, a emoção. Por isso, nunca entendi essa afirmação. Mas, tudo bem! Na verdade é outra coisa que me interessa: o sentimento em si.
Escolhi esse tema por que percebi que a saudade é algo que me incomoda muito no dia a dia. Viajo toda semana, deixo minha esposa, minha casa, meu lar. Cada partida é uma dor, cada retorno é uma festa. Mas, quando estou longe, ah... isso eu não sei explicar, nem em português, nem em língua nenhuma. O fato é que a minha trajetória sempre teve um pouco disso, quando solteiro era os meus pais que eu deixava, os meus irmãos, também, obviamente, faziam muita falta. Quando meu pai se foi para sempre, a situação ficou assim: semanalmente eu estou longe, diariamente sinto saudade.
Então, hoje, decidi filosofar sobre a saudade e a linguagem. Nesse sentido, o fato mais importante é que mesmo admitindo-se que saudade é palavra sem tradução, não se pode concluir que esse sentimento seja exclusivo dos corações de língua portuguesa. Em grego, inglês, latim ou alemão a dor seca e vazia da ausência daquilo, daquele ou daquela que outrora esteve presente e agora não mais está encontra suas expressões no idioma ou, simplesmente, nas linguagens do sofrimento.
A saudade é linguisticamente indefinida, ou, pelo menos, mal definida. Todas as vezes que se tenta explicá-la, uma lacuna fica no ar. Afinal, como definir, em palavras, um sentimento que se constrói com base na ausência? Perdoem-me se sou demasiadamente filosófico nesse momento, mas a ausência é inexistência, distanciamento; é, na melhor das hipóteses, aquilo que estava próximo e não está mais, ou, no pior ângulo, aquilo que nunca foi ou nunca esteve presente. Muita filosofia, não é? Desculpem-me, mais uma vez. Mas, esse é o mistério, como se pode definir o vazio? Como se pode explicar aquilo que se sente por não se ter, aquilo que se percebe, mas não está ali?
No início desse texto, utilizei a língua alemã como exemplo; não foi à toa. Uma poetisa alemã, chamada Homeschneider, escreveu que “saudade é a presença ausente da pessoa amada”. Foi a primeira vez, talvez a única, que vi alguém se referir à saudade como presença e isso é mais que poesia, isso é uma perspectiva inovadora e profunda para uma questão filosófica e existencial. Uma forma completamente diferente de todas as anteriores de se aproximar do que é saudade. Quando sinto saudade, não é a ausência que se manifesta em meu ser, mas a presença. Isso é muito inspirador e – por que não dizer? – consolador. É a presença de minha esposa que me acompanha quando estou com saudade, é presença do pai que sinto quando choro.
Que bom! Essa perspectiva me mostra que, em meio a lágrimas ou sorrisos, a saudade traz para perto, traz para dentro de nós a presença de quem amamos. Ela traz para a nossa intimidade a força das lembranças suaves das experiências vividas em outros momentos. A saudade, dir-se-ia, filosoficamente falando, é o retrato de um fenômeno que fica registrado no campo da memória. Porém, mais que isso, digo, a saudade é o retorno do próprio fenômeno, é a sensação de que tudo é como era. A saudade é um continuum, uma certeza de que nada deixou de ser.
Saudade gira em torno da esperança, não do desespero; saudade gira em torno do bem que se teve, não da perda; saudade não aparece, nem desaparece, ela é apenas um reagente do amor que outrora construiu algo dentro de nós. 
A saudade não é dominadora, não toma conta da realidade! A saudade não pode impedir os próximos passos, não pode nos prender no passado, não pode desmotivar o desejo de se construir um futuro ainda melhor do que o passado.  A saudade não pode nos impedir de viver o hoje, o agora, pois ela não é razão para se viver, mas apenas inspiração para continuar a jornada. Sentir saudade não é viver para recordar, mas recordar para continuar vivendo e buscando novas razões para se ter saudade.