Há
algum tempo escrevi um texto sobre a precariedade humana para apresentar em um
simpósio de ciências sociais; trata-se de uma reflexão sobre a fragilidade da
vida e a incapacidade do homem de se compreender no contexto de um mundo (aqui
no sentido cosmológico, ou seja, de universo) que ainda nos é quase que
inteiramente desconhecido. A reflexão, fundamentada nas obras de dois grandes
filósofos, Santo Agostinho e Martin Heidegger, foi considerada pessimista por
um colega professor e filósofo. Faço questão de dizer que discordo plenamente
do colega, mas reconheço que o problema talvez esteja na introdução do texto e
na forte evidenciação do quanto somos pequenos diante do cosmos.
Hoje,
ao receber a notícia da morte súbita de uma pessoa por quem nutri grande
admiração, aquele texto veio inteiramente à minha mente – agora, evidenciando o
sentido da filosofia prática, aquela que se ocupa dos fatos e atos da vida
comum. Perguntei-me, depois de uma jornada considerada excepcional, aquele
homem tão admirado se foi, deixando o quê? Mas, essa pergunta não está
relacionada diretamente ao finado amigo, muito longe disso, não quero que o
texto ofereça qualquer aparência de desmerecimento da vida, da carreira e da
produção dele. A pergunta está relacionada àquilo que nos tem motivado a fazer
o que fazemos e a desejar o que desejamos.
Quando
voltei a refletir sobre tudo isso, caí na inevitável questão, qual é o sentido
da vida? Sim, pois diante da morte de alguém que se admira é impossível não se
perguntar sobre esse assunto. Tentei obter uma resposta racional, aliás tenho
tentado isso há muito tempo, procurando esclarecer, principalmente aos meus
amigos pensadores, que razões temos para continua vivendo. E do ponto de vista
puramente racional, vi-me obrigado a concordar com Friedrich Nietzsche. Aliás,
vi-me obrigado a me tornar ainda mais cético do que ele. Olhando para o mundo
de um ponto de vista materialista, não podemos encontrar sentido na vida, não
há como. Nietzsche sugere que a vida humana não tem finalidade nenhuma a não
ser a reprodução e perpetuação da espécie. Eu, porém, acredito que, do ponto de
vista materialista, isso não é sentido suficiente para a vida.
Sou
mais cético que Nietzsche quando afirmo, usando como base o mesmo materialismo
racional que ele e seus seguidores utilizam, que nenhum legado que possamos
deixar para as gerações futuras poderá escapar do cansaço que consome as nossas
vidas. As heranças que deixamos para os nossos filhos colocam-nos na mesma
posição que nós, oferecendo-lhes as mesmas preocupações e trazendo-lhes as
mesmas dores. Uma repetição da vida, um ciclo que se reinicia continuamente, um
“eterno retorno” da mesmice da falta de sentido. Lembra-me a lenda de Sísifo,
personagem da mitologia grega, condenado por Zeus a mover uma pedra para o cume
de uma montanha, mas, todos os dias, no final da tarde, com a tarefa quase
concluída, a pedra rola montanha abaixo e Sísifo é obrigado a reiniciar a sua
tarefa. Eternamente, Sísifo empurra uma pedra para um alvo que jamais será
atingido. Assim, parece-me a vida quando eu a limito às fronteiras da
racionalidade.
Mas,
pera lá, eu disse que o texto não era pessimista. Então, tenho que provar isso.
Acontece que a precariedade da vida, ou seja, essa nossa incapacidade de
explicar racionalmente as nossas origens e destinos – pela falta de
conhecimento do mundo no qual fomos lançados – abre os caminhos para algo muito
mais forte do que a simples racionalidade, o sentimento de eternidade. Sim, o
sentimento de eternidade, aquele sentimento que nos faz ter uma convicção
interior de que não encontraremos um fim, mas que nossas vidas de alguma
maneira se prologarão. A racionalidade nos afasta desse sentimento, mas, a não
ser que estejamos inseridos na mais profunda angústia, esse sentimento está lá
no nosso interior, ainda que racionalmente negado.
Esse
sentimento não pode ser tratado apenas como um mecanismo de defesa da
psicanálise freudiana, ele precisa ser aceito como uma alternativa a tudo
aquilo que precisamos e desejamos conhecer. Não quero retornar ao período
mítico, destruído brilhantemente pela filosofia pré-socrática, longe disso,
quero apenas que se veja que a racionalidade materialista deixa um vazio muito
grande na sua explicação. Bram Stoker, em seu mais famoso livro - Drácula -,
colocou na boca de um dos seus personagens, Van Helsing, que fé é acreditar em
tudo aquilo que temos certeza que não existe.
É
essa lacuna entre o que sabemos e o que desconhecemos que me anima a encontrar
um sentido para a vida. Esse sentido não está no que deixamos como herança, não
está no que possuímos, não está no que encontramos, mas sim naquilo que
procuramos. O sentido da vida é essa busca implacável pelo preenchimento
interno, pela elucidação de algo superior à razão e todas as suas mirabolantes
explicações, é a busca por Deus. A lacuna do saber é o espaço correto para se
colocar Deus, não como esperança vã, no sentido que lhe é dado por
Comte-Sponville, mas, como realidade plausível e possível, como posto pelo rei
Salomão.
“Não
posso ver anjos no espaço”, diz o astronauta, “por isso sei que eles não
existem”. “Eu também não posso ver pensamentos”, diz o neurocirurgião, “mas,
sei que eles estão no interior de cada cabeça que opero”. Não precisamos de
limites para conhecer o mundo, precisamos de humildade, pois a fé é “a certeza
daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11:1).
Um comentário:
Profº Josemar,
Parabéns pelo maravilhoso texto!
Essa notícia pegou todo mundo de surpresa e creio que muitos hoje fizeram essa pergunta!
Fico com sua frase: É essa lacuna entre o que sabemos e o que desconhecemos que me anima a encontrar um sentido para a vida!
Acredito também que a vida não termina aqui e por isso procuro, na medida do possível, dentro das minhas limitações humanas, ser a cada dia, uma pessoa melhor. Um abraço
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